domingo, março 05, 2006

Clarice Lispector


“É um nome latino, né, eu perguntei para o meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e se transformando nessa coisa que parece "LIS NO PEITO", em latim: flor de lis. “ C.L.


Para muitos, a obra de Clarice Lispector é um longo poema em prosa que opera um corte oblíquo no real para o iluminar com a sua visão e nele inserir a aventura da sua escrita.
A sua capacidade de penetrar o mistério da alma (particularmente da alma feminina) nas suas relações com o Universo e com os Homens faz de muita da sua obra uma fonte permanente de surpresas e deslumbramentos.
Os leitores descobrem-se, a cada página dos seus livros, relacionando com a sua própria vivência as reacções dos personagens, vivência esta geralmente envolvida numa textura e contexto tanto encantadora(s) como dolorosa(s).

Apeteceu-me falar desta escritora.
Acho que não lhe é dada a relevância que, a meu ver, merece.
E acho que todos deveríamos lê-la em um qualquer momento das nossas vidas...
Por tudo isso, aqui vai :

OLHE AO REDOR
Olhe para todos a seu redor e veja o que temos feito de nós.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não entendemos porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas, coisas e coisas, mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.
Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia
.
CLARICE LISPECTOR


Não é extraordinário que, várias décadas volvidas, estas palavras tenham cada vez mais actualidade e premência?
É desta “matéria” que são feitos os “génios”.
Bem haja, LIS NO PEITO, onde quer que esteja.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Revi-me. Não sei dizer mais nada.

13:34  

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